Processos de terreiro - Desenvolvimento Mediúnico
Percepcionando a estrutura do culto o qual fazemos parte, a Umbanda, coloco-o como prefácio para mergulho na importância grandiosa da comunidade, magia e religiosidade. É descrita sua construção com corpo sacerdotal, filosofia, ritos, enfim, um conjunto de sistemas que a caracteriza como instituição.
Historicamente, na Umbanda partilhamos de conhecimentos e vivências, como outras religiões afro-ameríndias, cultua sua ancestralidade através da invocação de espíritos. No nosso contexto, na Tenda de Umbanda Caboclo 7 Flechas e Jurema, estes são uma representação do povo brasileiro em sua forma mais crua, em resultado da miscigenação, escravização e colonização.
Essa invocação é o apuramento do desenvolvimento mediúnico dos praticantes, processo onde preparam a mente e o corpo. Aprendendo e praticando fundamentos e saberes diversos, se conectando com energias superiores e com os antepassados. Recebendo assim, entidades que os auxiliam enquanto encarnados, orientam, trazem cura, conhecimento e questionamentos onde, através disso, são capazes de modificar e trabalhar diversas áreas, fazendo com que essa vida seja mais agradável de se viver.
Para melhor compreensão desse processo, é entendido que a mediunidade, apesar de seus múltiplos conceitos e modalidades, varia conforme o contexto social e grupal em que está inserida. Além de depender da capacidade que o indivíduo tem de se comunicar com as entidades que habitam um plano distinto do terreno. Este é um fenômeno cultural e religioso legítimo, podendo ser verbalizado como uma capacidade intrínseca de cada ser. Desde que trabalhado de forma correta, torna-se uma ferramenta muito útil para auxílio, aperfeiçoamento e crescimento pessoal, o que reflete na comunidade como um todo já que auxiliando a si próprio, a energia estende-se ao seu entorno e, nesse contexto, este passa a ser agente e instrumento da espiritualidade.
A invocação desses espíritos para auxílio de nada serviria se não seguíssemos suas orientações, os saberes dos mais velhos, carregados de metáforas, lições e ricas magias. Formas diferentes de lidar com a mesma situação, cada entidade com sua vivência, deixando sinalizada no físico e espiritual, marcas que perpetuam sua essência, fazendo desabrochar uma sensibilidade para que consigamos compreender o todo, onde coexistimos como parte deles, que também é parte nossa.
Quando se adentra numa família de axé, a convivência, a partilha, o trabalho, parece que é algo muito mais dignificante. Acho que é porque tudo é feito para algo maior, é feito para os guias, é feito para os Orixás. Nada tem a ver para qualquer pessoa física que esteja dentro daquele ambiente, nada é para o Pai ou Mãe de Santo, nem pros irmãos. É claro que reflete em ambos, mas só porque somos corpos e espíritos como extensão do divino.
No terreiro é como se virássemos pessoas 100% funcionais. Aprendemos afazeres diversos, rebocar uma parede, arear panelas, cozinhar e até a conviver em sociedade, diferentes formas de se portar em situações de raiva, tristeza, desrespeito e nervosismo. Aos poucos, esses saberes ancestrais vão se entremeando em nós, vamos tendo entendimento, modificando nossa mente e coração, até o próprio espírito. Vamos colocando em prática boas atitudes até sem perceber, moldando e lapidando nosso caráter, nossa moral, sendo mais proativos, respeitando a nós mesmos e o outro, ultrapassando barreiras imaginárias que nos enjaulam. Descobrimos a força por trás das nossas raízes e o quanto elas estão lá, firmes e fortes, mesmo diante todo caos e tempestade, sustentando o nosso ser. E é assim, entrelaçado com o pessoal, que o desenvolvimento mediúnico acontece. Sincrônico. Sem um, não há o outro.
A mediunidade é narrada no corpo e nos caminhos. Inerente ao desenvolvimento pessoal, o desenvolvimento mediúnico trabalha nossa melhora, lapidando a base bruta quanto pessoa física e espírito. Dessa forma, a espiritualidade é despertada e como num encaixe, age. Abrindo caminhos, mesmo que às vezes consideremos o seu fechamento, na nossa ignorância, fazendo limpezas íntimas, reformulando tudo para que estejamos minimamente asseados para contactá-la e servi-la. O acesso a ela é oportunizado, dimensionado e costurado a partir do pertencimento religioso, onde fazer parte de uma casa de axé, no nosso caso de uma casa de Umbanda, faz com que a experienciamos de uma forma única, diferente de um Candomblé, ou Casa Espírita, por exemplo.
O desenvolvimento pessoal e mediúnico simultâneo, permite que a conexão com o divino seja mais próxima e após costume energético, até facilitada. Consequentemente, formas variadas desse elo também vão aparecendo, visões, clarividência, olfativa, auditiva e incorporação, são exemplos e alguns dos tipos de mediunidade conhecidos. São conectores entre nós e algo maior.
A ritualística compartilhada dos mais velhos, encarnados ou não, ampara o caminho e em cada momento da vida, a própria espiritualidade se encarrega de demonstrar a necessidade de desenvolvimento de cada um desses conectores. Com aprimoramento, nos tornamos um instrumento dela para auxílio pessoal e à comunidade. Embora o processo seja individual, têm a participação de muitos, o que acaba por se entender também como uma experiência coletiva.
Quando se fala de desenvolvimento mediúnico dentro da casa de axé, a convivência com os irmãos de santo, a hierarquia, pessoas com criações totalmente diferentes da nossa, também fazem parte dele. Esse cenário nos ajuda na nossa construção como pessoa, trazendo valores como cumplicidade, respeito, caridade, carinho e acaba por fortalecer relações e propósitos. Porém muitas vezes ele é resumido a incorporação, quando essa é somente uma das ferramentas, somente um dos conectores citados para que tenhamos acesso e cultuemos nossos ancestrais.
A conexão com o divino e os antigos através da incorporação, tende a ser produzida em um estado de consciência alterada, de transe, ou qualquer outra definição de estado mental que implique certa inconsciência por parte do médium. Por ser a mais visual, involuntariamente ou não, a usamos como referência e parâmetro para qualificar um bom ou mal desenvolvimento mediúnico, o que acaba por vezes confundindo a nós e ao outro. Esquecemos que caráter, atitudes, falas e pensamentos, elevam ou abaixam nossa vibração. Que é na raiz, no nosso íntimo, que a mudança começa e se perpetua pelo além tempo, onde o desenvolvimento eterno se dá. É necessário relembrarmos do básico para que tenhamos firmeza e coerência na progressão do restante.
A vivência e experiência da mediunidade é individual, já que engloba aspectos e condutas especificamente para com o médium, mas ela é considerada elemento de uma religião coletivista, a família de axé. E é a experiência particular de cada um que a torna, de fato, algo concreto, não apenas como ritual ou manifestação do sagrado. Atua como experiência identitária que atravessa e constitui esses médiuns em seus ciclos vitais, no físico, social, moral e espiritual.
Saravá as forças ancestrais.
Laura de LogunEdé
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